Keira Knightley está para os filmes de Joe Wright assim como Johnny Depp para as produções do Tim Burton. Ela é a estrela de três dos cinco filmes do diretor. Mesmo assim, Wright define a parceria com a atriz em “Anna Karenina” como uma experiência revigorante.
“Quando fizemos ‘Orgulho e Preconceito’ (2005), ela tinha só 18 anos”, recordou o diretor. “E entre ‘Desejo e Reparação’ (2007) e ‘Anna Karenina’, acho que ela se desenvolveu mais um bocado. Agora, nós desafiamos um ao outro ainda mais”, apontou Wright, durante a divulgação de seu novo filme. E os desafios não foram poucos. Para começar, as ousadias narrativas que Wright evidenciava ao longo da sua filmografia vão um passo além: aqui, toda a história é contada com uma abordagem teatral, com as mesmas marcações, dramatizações, coreografias e alegorias dos palcos.
“Quando eu disse à Keira como eu pretendia fazer o filme, ela soltou um palavrão”, lembrou o diretor, com bom humor. “Mas ela logo compreendeu a minha intenção. Keira fez muito teatro ultimamente e entendeu que o que eu estava sugerindo é muito comum nos palcos”, acrescentou. Por trás dessa decisão, há mais que um exercício de estilo. “Trabalhamos com o conceito de que aquelas pessoas estão apenas desempenhando papeis em suas próprias vidas”, explicou Wright.
“Por muito tempo eu quis levar o público a uma imersão, um cinema estilizado que permitisse uma experiência mais envolvente”, teorizou o diretor, sugerindo que, com “Anna Karenina”, finalmente atingiu seu objetivo.
Como os ratos de biblioteca devem saber, “Anna Karenina” é um clássico da literatura russa. No livro do escritor Leon Tolstoi, a protagonista é uma aristocrata presa a um casamento sem amor que se aventura em um caso extraconjugal, submetendo-se a um grande risco pessoal e à humilhação pública.
O filme também é mais um drama de época na carreira da atriz. Desde que despontou para o grande público em “Piratas do Caribe – A Maldição do Pérola Negra” (2003), Keira demonstrou-se uma especialista em produções do gênero: além dos filmes de Wright, ela vestiu o espartilho em “A Duquesa” (2009) e “Um Método Perigoso” (2011). Sua beleza peculiar, das bochechas afundadas ao queixo pontiagudo, parece mesmo de outra época. Mas o interesse que Keira demonstra neste tipo de filme se deve ao fato de que seus dilemas são atemporais.
“Não há nada em ‘Anna Karenina’ que seja distante da nossa realidade”, declarou a atriz, quando indagada sobre os motivos que a atraíram ao projeto. “Nós vivemos em uma sociedade com muitas regras, e se você as quebra, o grupo inteiro se volta contra você”, emendou. Segundo Keira, esta questão transcende qualquer período, país ou classe social. “Todos podemos entender e nos relacionar com a Anna, com o sentimento de ser isolado ou de estar encurralado por regras que não necessariamente fazem sentido”, disse.
Mas Anna tem camadas ainda mais profundas, que contribuíram para torná-la uma personagem especialmente memorável. Para entendê-la, Keira foi direto à fonte. O processo de preparação, é claro, começou com a leitura do romance que inspirou o filme. “Mas o meu livro tinha o dobro do tamanho normal”, comentou a atriz. “Estava cheio de anotações e post-its coloridos, marcando personagens, eventos ou ideias diferentes. Por exemplo, a violência contida na personagem tinha uma cor, a relação com os personagens tinha outra cor. No final, eu já nem tinha cores novas para usar”, brincou.
Um dos aspectos mais importantes a serem trabalhados foi a ambiguidade de Anna Karenina. Por suas atitudes pouco convencionais, a personagem nem sempre é vista com bons olhos pelo público, e mesmo entre os leitores do romance há divergências entre os que a apoiam e os que a rejeitam. “Mas eu não estou mais tentando ser amada o tempo todo”, comentou Keira.
Parece uma decisão simples, mas como bem sabe o diretor Joe Wright, o assunto é um pouco mais complexo. “Esse é um problema bem antigo para as estrelas: será que elas só estão atrás de papeis adoráveis, que fazem a plateia se apaixonar por elas?”, questionou, antes de acrescentar: “Para Keira, a carreira não é um concurso de popularidade”.
O diretor tem orgulho de ter sido responsável pela indicação da atriz ao Oscar, por “Orgulho e Preconceito”, e apoia as interpretações controversas, declarando que extrair sentimentos dúbios do leitor – ou, neste caso, do espectador – era exatamente o que Tolstoi pretendia quando construiu essa história. “Anna não é uma heroína”, explicou Wright. “Diria até que ela é uma anti-heroína. Tolstoi escreveu uma personagem culpada e moralmente corrupta. Mas também é como se ele tivesse se apaixonado por ela à medida em que foi escrevendo o livro”, completou. E ninguém melhor que Keira Knightley, a musa oficial de Joe Wright, na fase mais madura de sua carreira, para dotar uma personagem de época com sentimentos que nunca vão prescrever.
Wright tem orgulho de ter sido responsável pela indicação ao Oscar de Keira, por “Orgulho e Preconceito”, e esperava que a Academia também fosse reconhecê-la pelo desempenho em “Anna Karenina”, mas o filme chamou mais atenção por aspectos técnicos – e venceu o Oscar na categoria de Melhor Figurino.
Muita responsabilidade foi atribuída à designer de produção Sarah Greenwood, que trabalhara nos quatro filmes anteriores do diretor. “A ideia de transpor a trama para o teatro era uma analogia muito boa para a maneira como aqueles personagens viviam as suas vidas”, comentou Greenwood, alegando que essa dose de ousadia era necessária para que essa adaptação se sobressaísse às demais. “Levamos 12 semanas para projetar e construir um teatro enorme, na escala real de uma casa de ópera russa. No começo da minha carreira, eu estudei design para teatro e trabalhei por três anos no palco, e isso me foi muito útil”, explicou. Pela empreitada em “Anna Karenina”, Greenwood recebeu a sua quarta indicação ao Oscar de Melhor Direção de Arte.
Para executar a visão incomum de Wright para o projeto, foi preciso reajustar o roteiro de Tom Stoppard, dramaturgo vencedor do Oscar por “Shakespeare Apaixonado” (1998). Apesar do repertório no teatro, Stoppard havia adaptado “Anna Karenina” em linguagem totalmente cinematográfica. “Joe foi procurar locações na Rússia”, relembrou o roteirista. “Mas, por várias razões, a busca foi insatisfatória”.
Quando o diretor resolveu mudar toda a abordagem e transpor as cenas de Moscou e St. Petersburgo para um teatro do século 19, o roteirista ficou embasbacado. “Foi meio chocante”, admitiu Stoppard. “Mas o choque foi amenizado porque, fora isso, Joe insistiu em não fazer mudança alguma no roteiro”, revelou.
“A ideia era pegar o roteiro que Tom havia escrito e encontrar maneiras de expressar exatamente aquilo em um ambiente limitado”, disse o diretor. “Eu acredito que as limitações, de certa forma, nos libertam criativamente”, completou.
Sobre os motivos para não filmar em locação, como pretendia originalmente, Wright mencionou que, em suas viagens pela Rússia, passou por lugares deslumbrantes – mas todos já haviam, de uma forma ou outra, servido de cenário para as demais versões cinematográficas de “Anna Karenina” – além do filme recente, há pelo menos uma dezena de adaptações do livro, em forma de longa-metragem ou de minissérie para a TV, algumas consideradas verdadeiros clássicos, estrelados por divas como Greta Garbo e Vivien Leigh.
Não só os técnicos tiveram de extrair o melhor dessa limitação: para contribuir com a visão do diretor, os atores se dedicaram com afinco. Afinal, para que todo o espetáculo não soasse artificial, as interpretações precisariam atingir uma voltagem ainda maior. “Os cenários e o modo como as cenas ecoavam umas nas outras sugeriam um movimento fluido e estilizado”, disse Keira, admitindo que, durante a produção, não conseguia visualizar como tudo aquilo se traduziria no resultado final. “A minha certeza era a de que o emocional da minha personagem precisava ser o mais cru e real possível, mesmo com os floreios ao redor dela. Foi um processo intenso, de trabalho muito pesado para mim”, completou.
A atriz divide a cena com Jude Law (“Sherlock Holmes”) e Aaron Taylor-Johnson (“Kick-Ass”), que interpretam o marido e o jovem amante de Anna, respectivamente. Como Keira foi a primeira a ser escalada, Wright precisava encontrar atores que convencessem como seus parceiros românticos. “Jude e Aaron foram as minhas primeiras escolhas”, declarou o diretor. “Jude convence como um homem com quem Anna teria se casado quando jovem. Ele é um grande ator característico, preso em um corpo de protagonista. Muitas vezes, só exigem que ela seja bonitão e charmoso, mas há muito mais nele além disso”, apontou o cineasta. “E Aaron tem a capacidade de parecer um jovem arrogante e autoindulgente no começo, e gradualmente levar o público a perceber que ele realmente ama essa mulher”, completou.
O elenco também está repleto de figuras conhecidas, como Matthew Macfadyen, o Sr. Darcy de “Orgulho e Preconceito”, Kelly Macdonald, da série “Boardwalk Empire”, e Domhnall Gleeson, da saga “Harry Potter”. Mesmo assim, quem mais chamou a atenção dos críticos, em um papel secundário, foi a sueca Alicia Vikander, mais conhecida por trabalhos no cinema europeu, como o filme dinamarquês indicado ao Oscar “O Amante da Rainha”.
Como Kitty, uma jovem também dividida entre dois homens, Vikander foi considerada uma revelação. “Quando eu li o livro pela primeira vez, eu tinha 15 anos”, recordou a atriz. “Eu julguei Anna pelas coisas erradas que ela fez e achava que Kitty era uma garota ingênua e incapaz de se defender. Hoje, tenho mais experiência na vida para entender as suas decisões e as coisas de que elas abriram mão”, disse a ainda jovem atriz, de 24 anos.
Por trás das câmeras, a pessoa responsável pelas roupas que ajudaram tanto Alicia Vikander e Keira Knightley a brilhar, a figurinista Jacqueline Durran, vencedora do único Oscar da produção, revelou o segredo que fez o filme ter tanto glamour. “Não se trata de uma produção sobre o século 19, mas uma versão estilizada dele, filtrada por influências da moda dos 1950, quando tudo era muito mais charmoso”, ela explicou. “É a versão Chanel de ‘Anna Karenina’”, resumiu, referindo-se à famosa grife francesa, que por acaso tem Keira como garota propaganda, e cujas joias completaram o visual do figurino.
“Tudo é cheio de simbolismo”, completa Keira, que diz adorar trabalhar com Durran – a figurista também a vestiu nos dois filmes anteriores do diretor. “Com a ajuda do figurino, mostramos Anna como um pássaro aprisionado numa gaiola, onde os corsets eram sua gaiola, e penas de pássaros mortos enfeitavam seus cabelos”, a atriz contou.
“Há muita poesia neste filme, por isso ele é tão lindo”, define a atriz. De fato, “Anna Karenina” é de uma plasticidade comovente. “Ele é realmente lindo”, elogia mais uma vez sua protagonista, com uma satisfação quase sexual. Uma satisfação de Anna Karenina.
Por: Louis Vidovix