Sherazade é uma personagem histórica da literatura, por provar a força de uma narrativa instigante, bem contada, que sabe prender a atenção de quem a escuta. Através de sua criatividade, planeja impedir a sua própria execução após ter se casado com um sultão louco e vingativo, que sempre executa suas esposas ao amanhecer. Mas com Sherazade o sultão não consegue fazer isso, pois essa mulher fascinante o conquista com suas histórias, deixando-o sempre ansioso por ouvir a próxima (e Sherazade têm 1001 histórias para contar).
Assim, lentamente, Sherazade o modifica, controlando sua fúria vingativa. Dentro da casa é como se fosse uma versão moderna desta famosa história, com alguns outros desdobramentos. O estudante Claude Garcia (Ernst Umhauer), de apenas 16 anos, é como a Sherazade para Germain, seu professor (Fabrice Luchini). Se Sherazade foi o antídoto para um sultão ferido pela traição de sua primeira esposa, Claude o é para um professor desgastado pelo desinteresse de seus alunos pela literatura. Em Claude, Germain volta a acreditar em um aluno seu e passa a ficar fascinado em suas histórias. No caso, elas não tratam de Aladim e sua lâmpada maravilhosa, ou de Ali Babá e seus quarenta ladrões, mas em o que acontece dentro de uma casa de classe média que Claude visita, onde vivem Rapha pai (Denis Ménochet), Rapha filho (Bastien Ughetto) e a esposa/mãe Esther (Emmanuelle Seigner). Logo Germain, apaixonado pela capacidade narrativa de seu pupilo, praticamente fará de tudo para deixar com que a história continue a se desenvolver, se colocando como presa fácil dos ganchos narrativos de Claude, que o conduz aonde quer com seu estilo literário.
François Ozon conduz, igualmente com estilo, esta sua adaptação da peça “El chico de la última fila”, de Juan Mayorga. O roteiro, também de autoria de Ozon, é o ponto alto do filme, sendo muito envolvente, e tendo em pouco tempo a capacidade de também prender o espectador na teia narrativa do jovem Claude, mal conseguindo destinguir o que é real ou invenção de Claude. O filme, inclusive, guarda semelhanças com Adaptação, dirigido por Spike Jonze (com roteiro de Charlie Kaufman), neste sentido de deixar o espectador um pouco perdido na tênue fronteira (talvez inexistente) entre realidade e ficção. A dupla de atores Ernst Umhauer, no começo de sua carreira, e Fabrice Luchini, um comediante já estabelecido há décadas (trabalhou muito com Eric Rohmer, inclusive), ilustra bem este confronto e comunhão de experiência e juventude, entusiasmo e desgaste, talento e mediocridade, dos dois personagens.
O entrosamento entre os dois enriquece a já fascinante e caleidoscópica trama. As mais famosas Emmanuelle Seigner e Kristin Scott Thomas (que interpreta a esposa de Germain) lhes dão um ótimo amparo, com Seigner sendo uma espécie de musa inspiradora e Kristin agindo como uma crítica (e sexy) testemunha de todo o processo. Seigner já está a anos-luz de ser “apenas a esposa bonita de Roman Polanski” (rótulo que a perseguiu no começo da carreira), por seu extenso e respeitado currículo, e Kristin Scott Thomas mostra cada vez mais que se dá até melhor no Cinema francês do que no britânico ou americano (inglesa de nascimento, viveu boa parte de sua vida na França, daí seu francês perfeito).
Mas o filme é do professor e do aluno, ou, se preferir, do diretor François Ozon e de nós, os espectadores, que também sofremos influência da narrativa dele, assim como acontece com Germain em relação a Claude. Dentro de casa mexe com o espectador, por remeter ao eterno e inescapável encanto que uma narrativa bem contada exerce nele. Desde tempos imemoriais, com os velhos sábios nas tribos, contando suas histórias noturnas para as crianças, até a geração da Internet e de seriados de TV importados, quem sabe contar uma história, e domina os instrumentos para prender a atenção de seu público, alcança um poder muito grande e é valorizado. Germain inclusive ensina didaticamente alguns truques narrativos a Claude (e por extensão ao espectador), mas sem o talento de Claude eles não passam de truques. Claude no filme, e François Ozon no Cinema, encarnam estes grandes narradores de todos os tempos, que sempre existirão (não importa a mídia onde trabalhem), e que sabem destes truques por instinto, e têm talento suficiente para conduzirem seus públicos como um titereiro comanda suas marionetes, levando-as para onde quiser e contando ainda por cima com a aprovação delas. E, assim, descobrimos que somos diretos descendentes do sultão de Sherazade, sempre pedindo para ouvir mais uma historinha. Ou mais de 1001 histórias, se for possível, porque nunca ficamos saciados, ainda mais depois de ouvir, e ver, uma história tão interessante.
Por: Marcelo Renó