Desde o século XV, Joana D'Arc tem sido uma das mulheres mais importantes da História. Não existe, em toda a Idade Média, alguém não pertencente à nobreza cuja vida tenha sido tão bem documentada. Cientistas e artistas tentaram decifrar o enigma no qual ela se transformou: santa, herética, guerreira, feminista, homossexual, esquizofrênica, médium, virgem, prostituta, mártir, vitoriosa, injustiçada, feiticeira. São controversos os adjetivos vinculados à jovem camponesa cuja interferência na história da França foi tão rápida e decisiva: libertar o cerco de Orléans do jugo dos ingleses, coroar o Delfim Carlos VII como legítimo rei da França, restituir a confiança de uma nação, e logo depois de ser traída, vendida e queimada na fogueira em 1431, após um julgamento polêmico e, provavelmente, fraudulento.
Foi a mais famosa ré da Santa Inquisição. Ainda no século XV, cogitou-se que houvera um erro em sua condenação, mas ainda se passariam quase 500 anos para que fosse feita uma retratação da Igreja Católica, levando à beatificação e canonização em 1920. Bernard Shaw sugere que sua condenação era inevitável: Joana antecipava a Reforma Protestante, defendia o absolutismo em meio a privilégios feudais, queria a expulsão dos ingleses em nome da unificação francesa e era, mesmo sem o saber, uma das primeiras feministas da História. Foi ela que acendeu o estopim que iria dar fim à Guerra dos Cem Anos, e isso com apenas dezessete anos. Joana morreu aos dezenove, na fogueira em Rouen.
Joana não se tornou famosa por ser musa, esposa, amante, símbolo sexual ou filha de algum homem célebre. Mas por ter quebrado paradigmas e demonstrado extraordinariamente força em um tempo onde a mulher não tinha voz, destacando-se como uma liderança militar, num mudo dominado pelos homens. Um espetáculo sobre ela estabelece paralelos com lutas, conquistas e criticas do mundo atual: as questões de gênero e de classe, as estratégias corruptas na disputa pelo poder, o papel da religião na vida pública. Apesar das declarações de que agia guiada pelas Vozes que ouvia, não nos imposta saber se Joana D'Arc foi uma iluminada ou uma esquizofrênica. Interessa-nos que tenha realizado tantas conquistas, sendo mulher, virgem, travestida, analfabeta e camponesa.
Em Um Tribunal para Joana D'Arc, Joana está diante de um júri masculino, sendo julgada, não exclusivamente por seus feitos, mas por ser mulher e de uma classe socioeconômica menos privilegiada. O espetáculo dialoga com algumas questões fundamentais que, levantadas de tempos em tempos, se encontram em pauta em nossos dias: o empoderamento feminino e o fim de preconceitos sexistas e classistas. A França se libertou do jugo inglês, após uma guerra de mais de cem anos. Contudo, a luta pela equidade entre homens e mulheres, entre pobres e ricos, entre representantes da cultura hegemônica e oposicionistas parece estar longe de chegar a um resultado racional, com consideração moral e ética igualitária.
Por Marcelo Morato - Diretor
Adaptação e Direção: Marcelo Morato
Produção: Joel Tavares
Assistente de direção: Bernardo Marques
Consultoria filosófica: Ana Paula Botelho
Elenco: Daniel Kristensen, Eduardo Leão, Graziela Dartelet, João Antonio Santucci, Joel Tavares, Raphael Oliver, Stefano Giglietta, Tiago Kempski.
Trilha sonora: Leo Rodriguez
Cenário: Vinicius Fragoso
Figurino: Nina Rosa e Andressa Damascena
Iluminação: Gabriel Prieto
Direção Corporal: Marina Salomon
Fotos: Facebook