“A mulher? É muito simples, dizendo os amadores de formas simples; é uma matriz, um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defini-la.” É com esta frase que Simone de Beauvoir abre o primeiro capítulo de O segundo sexo. Para discutir a posição da mulher no mundo, é necessário pensar o lugar que seu corpo ocupa no mundo, ou seja, pensar quais experiências lhe são permitidas e negadas a partir da diferença sexual e quais significados essas diferenças assumem. Não vivemos tão somente enquanto corpos-objetos descritos pelos cientistas, mas enquanto corpos submetidos aos processos de subjetivação e às relações de poder vigentes.
Quando a fila de mulheres vestidas de capas vermelhas e antolhos brancos avança sob um discurso que reafirma um destino biológico e social imutável, percebemos o que está em jogo na série The Handmaid’s Tale: a exploração do sistema reprodutivo das mulheres com base em uma sujeição socialmente fabricada. Na república de Gilead, tornar-se mulher é ocupar um lugar de subalternidade: é ser apenas uma matriz, um ovário, uma fêmea.
Sem corpo próprio
“Você fica nove meses com ele na barriga, sentindo que é seu. Sinto que estou dando meu próprio filho”, alguns minutos após o parto, o bebê é retirado da mulher que o gerou e colocado nos braços de um casal que trata o nascimento como um milagre divino. A cena descrita não aconteceu na série The Handmaid’s Tale, mas em Anand, cidade indiana onde mais de 700 bebês foram gerados por meio de “barrigas de aluguel”. O próprio termo utilizado para falar da exploração do sistema reprodutivo das mulheres já mostra o processo de desumanização pelo qual elas passam: não se fala de seres humanos, mas de barrigas.
Embora haja diferenças entre a narrativa de Margaret Atwood e a realidade de mulheres indianas, o debate central, em ambos os casos, é a exploração dos corpos das mulheres. Na Índia, as mulheres não são obrigadas por um Estado teocrático a engravidarem, mas tampouco é possível falar de escolha livre em se tratando de mulheres em situação de miséria absoluta e de um mercado perverso e sem qualquer regulação.
The Handmaid’s Tale nos coloca diante de um espelho capaz de aumentar a realidade, visto que as violências perpetradas contra mulheres em Gilead se aproximam das violências perpetradas contra mulheres hoje: mutilação genital, lesbofobia, exploração do sistema reprodutivo, estupro, feminicídio, entre outras. Talvez o assombro diante da série seja causado justamente pela criação de uma ultra-realidade que evidencia a violência naturalizada.
“Havia matérias nos jornais, é claro. Corpos encontrados em valas ou na floresta, mortos a cacetadas ou mutilados, que haviam sido submetidos a degradações, como costumavam dizer, mas essas matérias eram a respeito de outras mulheres, e os homens que faziam aquele tipo de coisas eram outros homens. Nenhum deles eram os homens que conhecíamos. As matérias de jornais eram como sonhos para nós, sonhos ruins sonhados por outros.” (ATWOOD, 2017, p.54)
A série recupera também questões que eram – convenientemente – dadas como encerradas, tais como a exploração das mulheres com base na diferença sexual. Em A dialética do sexo, Shulamith Firestone afirma que a revolução definitiva só será possível com a “libertação das mulheres da tirania sobre seus sistemas reprodutores, através de todos os meios disponíveis” (FIRESTONE, 1970, p.234). Firestone coloca em jogo a sujeição social da mulher organizada em torno em torno de seu destino biológico.
“Da maneira como fazemos, todas elas conseguem um homem, ninguém é excluído. […] Da maneira como fazemos estão protegidas, podem realizar seus destinos biológicos em paz. Com pleno apoio e encorajamento.” (ATWOOD, 2017, p. 192)
The Handmaid’s Tale é sobre nós hoje
O controle estatal dos corpos das mulheres não é ficção, não ocorre apenas na República de Gilead, é uma realidade próxima. Firestone (1970) nos lembra que a construção da humanidade superou, em muitos aspectos, o destino biológico imposto às mulheres, ao criar métodos de contracepção, por exemplo. No entanto, temas como aborto ainda são decididos por um Congresso majoritariamente masculino, o que mostra que a dominação masculina é, em muitos aspectos, fundada na diferença sexual. Embora nosso Estado não seja assumidamente teocrático, como Gilead, dogmas religiosos são levados em consideração para definir a legislação sobre aborto, até mesmo em casos de estupro, anencefalia e risco de morte para a mulher grávida.
O livro de Atwood é, em última instância, uma poderosa ferramenta de análise social, exibindo as relações de poder em jogo hoje: é, como toda literatura distópica, um aviso de incêndio, “o qual, como todo recurso de emergência, busca chamar a atenção para que o acontecimento perigoso seja controlado, e seus efeitos, embora já em curso, sejam inibidos” (HILÁRIO, 2013, p. 202). Ou, em comparação ao que Michael Löwy nos diz sobre Walter Benjamin, “um sino que repica e busca chamar a atenção sobre os perigos iminentes que os ameaçam, sobre as novas catástrofes que se perfilam no horizonte”. (LÖWY, 2005, p. 32).
Em uma cena da série, a protagonista Offred diz: “Quando aniquilaram o Congresso, não acordamos. Quando culparam terroristas e suspenderam a Constituição, também não acordamos. Disseram que seria temporário. Nada muda instantaneamente. Você seria fervido numa banheira de aquecimento gradual antes que percebesse”.
Em um cenário em que os direitos das mulheres são constantemente ameaçados pela crise política, todos os alarmes de incêndio se acendem.
Referências
ATWOOD, Margareth. O conto de aia. São Paulo: Rocco, 2017.
FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo. São Paulo: Livros de bolso, 1970.
HILÁRIO, Leomir Cardoso. Teoria crítica e literatura: a distopia como ferramenta de análise radical da modernidade. Santa Catarina: UFSC, 2013.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura sobre as teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.
Por: Daniela Lima escritora e ativista. Autora de Anatomia (2012), Sem Importância Coletiva (2014) e Sem Corpo Próprio (2015 – em andamento). Teve contos traduzidos para a revista The Buenos Aires Review (2013) e foi finalista do prêmio literário Exercícios Urbanos (2008) na categoria contos. Colaborou para diversas revistas e sites, entre eles Blog do Instituto Moreira Salles, Carta Capital,Margem Esquerda, Territórios Transversais e Pesquisa Fapesp. É comentarista da Rádio Manchete, biógrafa da escritora Maura Lopes Cançado e fundadora do coletivo feminista Jandira (2014). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.