No caminho do cinema, deslizei o dedo pela ultima vez natimeline do celular e esbarrei em duas leituras tão contundentes quanto díspares sobre Birdman, filme de Alejandro Gonzalez Iñarritu favorito ao Oscar deste ano. Uma das leituras exaltava as qualidades técnicas do filme - a fotografia entre o escuro dos bastidores e as cores do palco e da rua, a sequência sem cortes perceptíveis, as referencias de Hitchcock a Antonioni, passando por Fincher e Lynch, a atuação de Michael Keaton, o retrato do mundo da fama, dos críticos, do nosso medo da invisibilidade. Outra leitura apontava uma lista de clichês sobre o herói em crise americano: o grande ator e mau pai de família, instável e inseguro, que brilha na tela e sofre no camarim.
Ao fim da sessão, levei algum tempo para listar minhas próprias impressões, sem exatamente discordar com o que havia lido até então. A primeira delas é que, de fato, Iñarritu conseguiu um feito e tanto ao amarrar tantas possibilidades de leitura quanto cabiam em um cenário, entre o claustrofóbico e o labiríntico, pelo qual todos os caminhos levam ao teatro. No filme, há um público do lado de dentro e outro do lado de fora, mas só nós, os espectadores do cinema, temos a prerrogativa da onisciência. Ela nos dá a possibilidade de buscar, por nós mesmos, quem são os homens por trás das máscaras apresentadas em sequência. É algo mais do que buscar o rosto real entre a peruca e as rugas (captadas em proximidade) de Riggan Thomson, personagem de Michael Keaton: ambos, em tese, são mais conhecidos por suas fantasias, a do Batman e a do Birdman, e levaram anos se estapeando em papeis menores até encontrarem um figurino que abarcasse o tamanho de suas pretensões.
Nessa interseção, Iñarritu mostra que os caminhos do sucesso e do prestigio são só aparentemente distintos ou anuláveis. Thomson quer se ver livre da máscara que lhe deu a fama. Quer provar que não é, ou não foi, apenas um rostinho bonito (e coberto) a serviço da indústria do entretenimento. Pena, no entanto, para se dissocial da velha imagem e encontrar a própria identidade. Seu personagem na franquia de super-heróis, afinal, era amado. E era amado porque levava o público a uma fantasia perfeita montada sobre maniqueísmos e efeitos especiais. Mas a arte não é entretenimento, insiste o personagem-ator. Arte é questionamento. É provocação. É precisão. É atuação na medida exata, portanto. Daí a obsessão em levar à Broadway uma peça adaptada a partir de um texto de Raymond Carver, dramaturgo que, anos antes, incentivou o protagonista a se transformar em ator – graças a um elogio escrito a mão em um guardanapo de papel. É o primeiro de três papeis literais, vulneráveis e simbólicos, do filme.
A operação hercúlea para levantar mundos e fundos pelo projeto artístico, portanto, é nada mais que um projeto pessoal. Nas linhas labirínticas do cenário, não são apenas as vaidades de atores e personagens que se cruzam e confundem os limites entre o cálculo humano e a atuação. Confundem-se também as fronteiras entre o que é entretenimento e o que é a grande arte. Em uma das cenas, Thompson cita os nomes de grandes atores contemporâneos que poderiam integrar o elenco de sua peça. Desiste quando se dá conta de que todos estavam comprometidos nas filmagens de franquias de super-heróis, entre eles Michael Fassbender e Robert Downey Jr. Essa fronteira fica ainda mais confusa quando Thomson esbarra nos caminhos em direção à legitimidade de seu trabalho: o controle do elenco e a intransigência da crítica.
No filme, todos parecem conectados com os novos signos dos circuitos de consagração, quase todos calculados em compartilhamentos, retuítes e número de visualizações. E daí?, pergunta-se Thomson antes de concluir que um cachorrinho fofo brincando com uma bola também é um fenômeno de cliques e compartilhamentos.
Noves fora a parafernália tecnológica das grandes franquias, o voo mais alto de um artista é quase uma concessão entre o humor, o ressentimento e a preguiça das vozes autorizadas: os críticos que escrevem à mão e mal se dão ao luxo de conferir o objeto analisado. Mas quem deu aos entendidos o cálculo de uma fronteira e outra? Quem garante que esta fronteira não é, em si, uma criação aleatória (e por isso arbitrária)? O que move e o que valida o espetáculo é só, e não apenas, a vaidade.
As perguntas sobre o preço dessa empreitada podem não ser novas, mas, em Birdman, parecem colocadas num contexto providencial. A cada investida, Thomson se transforma na alegoria de um imperativo contemporâneo: o olhar do outro define quem eu sou. Ainda que este olhar seja uma construção arbitrária. Enquanto tenta, em vão, exercer o controle sobre a própria peça, o ator-personagem recebe ordens sobre o que e como fazer, mas as previsões dos entendidos, dos colegas de palco à indolência da crítica, são desmentidas o tempo todo pelo imponderável. Numa das cenas, ele é humilhado por Mike Shiner, personagem interpretado por Edward Norton chamado a compor o elenco da peça para atrair o grande público. Shiner leva longos minutos para mostrar a Thomson que ele é um ator liquidado e que depende do prestígio dele, Shiner, para não transformar sua peça em um fracasso. No mesmo instante, uma família pede para tirar uma foto com o ídolo – e ignora solenemente o rosto que garantiria o sucesso do espetáculo.
Esse reconhecimento parece pouco para quem, perto dos 60 anos, ainda incorpora na vida real a confusão entre ser admirado e ser amado. Estes parecem caminhos excludentes, e a inexistência de um meio-termo entre eles leva o protagonista a um quase estado de demência. O drama dele é, assim, o drama de todos nós. Afinal, o que fazer para não ser esquecido? Do que mais é preciso abrir mão, além da própria identidade, em nome dessa consagração? (...)
Em Birdman, Thomson nada mais é do que o espectador da sua história - e da história dos papeis incumbidos a ele. A empreitada de tentar domá-la desaba à medida que ele se percebe incapaz de lidar com ele(s) mesmo(s), e não apenas com o sucesso ou a consagração. Pior: a vida que se interpreta e a vida que se vive podem não ser as mesmas, mas não estão desconectadas nem obedecem às demarcações de tempo e espaço do teatro. No filme, no palco ou na plateia, nunca se sabe exatamente onde estão os roteiros, os improvisos ou as dissimulações - nem mesmo onde começa e onde termina a excitação.
No labirinto de Birdman, todas as entradas e saídas se confundem, mas desembocam na mesma ordem: a urgência contraditória de ser e ser visto e, ao ser visto, ser amado e admirado. Cabe a Sam, a filha de Thomson vivida por Emma Stone, o papel (literal) revelador desse vazio. Ela passa boa parte do filme preenchendo um rolo de papel higiênico com pequenos traços de caneta. Descobrimos, em certo momento, que cada traço representa dez mil anos na história do Planeta. Olhada em perspectiva, a história da humanidade era resumida em um pequeno e inexpressivo pedaço de papel, no qual todas as grandes obras foram construídas e fadadas ao esquecimento. Sam parece ser a única personagem que não se importa com isso. Para ela, tanto faz: o sucesso e a consagração artísticas, no fim das contas, servem como passatempo de um público seleto capaz de pagar uma fortuna por um bom assento no teatro ou cinema e cuja maior preocupação, ao fim do espetáculo, é a sobremesa depois do programa. Enquanto fala, o interlocutor, Thomson, desaparece. É então que descobrimos quem é a sua plateia: nós. O alerta tem o mesmo destino de todas as mensagens escritas em papel apresentadas na trama: o descarte. Quem se importa?
Entre tantos truques e referências, Birdman surge como favorito ao Oscar de melhor filme. Parece consagrado antes da premiação, o que não deixa de ser irônico. Nas últimas semanas, não poucos críticos especializados o apontaram como o grande filme da carreira de Iñarritu, de Keaton e de todo mundo que colocou o empreendimento de pé. Parece contraditório, mas, caso leve o prêmio, seria curioso ver diretor e elenco levarem o exercício de metalinguagem às últimas consequências: “Obrigado pela lembrança, mas podem desistir. Estamos todos fadados ao aniquilamento”.
Por: Matheus Pichonelli