O que torna um homem, Homem? Seriam os aspectos biológicos, uma junção de células que criam carnes, ossos, tendões, tecidos dos mais variados? Ou haveria algo além da mera questão evolutiva? Um caráter de humanidade, que diferencia o homem dos demais animais? Uma das mais importantes discussões que perpassa toda a história da filosofia, esta questão é o tema principal do filme “Hannah Arendt”, da diretora alemã Margarethe Von Trotta.
O longa-metragem, que, em certos momentos peca por um certo exagero dos atores, o que tira a naturalidade das cenas, não é exatamente uma cinebiografia da filósofa alemã de origem judia que migrou para os EUA para fugir da Segunda Guerra Mundial. Foca em um determinado episódio na história da autora de As origens do totalitarismo que ilumina, provavelmente, a principal discussão da sua vida: qual é A condição humana [não por acaso, nome de outro de seus clássicos]?
Trata-se de uma tentativa desafiadora de reconstituição dos caminhos percorridos pelo pensamento da filósofa na construção do que ela chamou de “banalidade do mal”. Desafiadora, porque instalada no campo do pensamento, do “indizível”. Daquilo que exigirá do expectador não apenas a compreensão racional de um diálogo despreocupado com a incompreensão do grande público, mas uma “epistemologia do tato”, como dizem alguns estudiosos do período renascentista. O olhar cuidadoso para a singularidade do humano em um fenômeno histórico que se tornaria paradigma universal da maldade.
Já morando em Nova York e com a sua vida completamente estabelecida, entre aulas na universidade, amigos e um marido a quem ela demonstra muito carinho, Hannah Arendt recebe a informação de que o famoso nazista Adolf Eichmann tinha sido preso pelo serviço secreto israelense em Buenos Aires e seria levado para julgamento em Israel. Ela, mesmo que não tivesse qualquer ligação direta com o caso, envia uma sugestão para a conceituada revista “The New Yorker” se oferecendo para cobrir, por eles, o processo.
Já na “terra sagrada”, ela assiste à dura rotina de depoimentos de testemunhas, de vítimas que passam mal em júri, e do próprio Eichmann. Em vez de admitir qualquer culpa no extermínio de milhares de homens e mulheres, o alemão se declara um mero cumpridor de ordens, um homem que simplesmente obedecia ao Führer. Mesmo que para isso tivesse que matar o próprio pai, naquele momento, ele era um soldado sem direito a retrucar as ordens enviadas. Hitler era a lei.
Para o julgamento, a diretora optou pelas imagens de época, absolutamente impactantes. Toda a vasta historiografia sobre o nazismo se vê confrontada com a espontaneidade do sujeito gripado, enjaulado diante do júri a dizer que sua função era fazer os vagões que traziam os judeus apenas seguirem seu curso. Através dos olhos fixos de Arendt não se vê a História do nazismo em julgamento, a tragédia humana do assassinato dos seis milhões de judeus em discussão, mas um homem, um burocrata, expropriado de sua capacidade de pensar.
Hannah Arendt fica impressionada, com o argumento e com o aspecto do réu. Ele parece tão normal, tão comum, tão banal, tão humano... E se ele não é o autor da ordem, seria ele o responsável pelas mortes dos judeus nos campos de concentração? Se ele é apenas o instrumento da ação de um Estado totalitário, ele seria igualmente culpado pelos crimes?
“As perguntas precisam ser feitas”, ela diz. Hannah Arendt passa a maior parte do tempo buscando a origem do incômodo que aquele sujeito provoca nela. A ausência de soberania do homem e não o julgamento da ilegalidade do Estado que ele poderia, naquele momento, representar. Na contramão da cultura ocidental que criou os conceitos de universalidade, identidade e homogeneidade, ao ponto de permitir a formação do totalitarismo, Arendt nos leva ao estranhamento do óbvio, do mais simples cálculo histórico que gerou a dicotomia demonização/vitimização como explicativa das catástrofes do século XX.
A resposta para todas as questões apresentadas até o momento neste texto é a mesma, e é insinuada logo no início do filme.
No início de sua vida intelectual, ainda bem antes da Segunda Guerra, Arendt decide ir estudar com um dos maiores filósofos do século XX, o igualmente alemão Martin Heidegger. Mesmo que anos depois Heidegger tenha colaborado com o regime nazista, os dois se aproximam e tem um caso de amor. Apesar das diferenças no campo político, os dois mantém uma relação bastante próxima durante toda a vida, “depois de 46 anos, como desde sempre”, ela diria em uma das inúmeras cartas trocadas entre ambos.
Na cena em que a jovem Hannah se encontra com o já renomado professor, ele lhe pergunta: Então você quer aprender a pensar? Com a confirmação de Hannah, ele responde: O pensamento é algo solitário, e não é apenas racional, mas envolve as mais variadas emoções.
A filósofa, já de volta a Nova York, se instala sobre o divã, fumando. Fica pensando o caso. Pensando o que tinha visto no julgamento, pensando as conversas que tinha tido com o seu mentor: “a morada do pensamento é um lugar de silêncio”.
Em fins de 1969, ela chega a escrever sobre a importância da recordação para a história do pensamento. É o “aproximar-se da distância” que garante, segundo a filósofa, a possibilidade do pensar como uma aptidão mental.
Hoje, talvez, a “distância” de Arendt em relação aos fatos possa ser considerada um tanto precoce. Foram apenas 15 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial até que ela pudesse afirmar, entre outras coisas, que a estratégia nazista consistiu em despersonalizar a sociedade e desumanizar suas vitimas ao ponto de criar uma zona ambígua entre a colaboração e a resistência, dentro e fora dos campos de concentração. Exemplos de como esse processo acontecia em todos os lugares, e não apenas nos campos, são os casos da maior parte dos países latino-americanos que criaram legislação para impedir a entrada de refugiados judeus. Ou a França de Vichy, que discute incansavelmente e sofre até hoje com suas dores de consciência.
Com essa pequena “distância” de tempo, mas já tendo estourado o seu prazo, e demonstrando arrogância com as pessoas de fora do seu círculo de amizade, uma atitude quase exótica àquela personagem dócil de dentro de casa, Arendt entrega o texto final. Logo depois, esta obra seria transformada no livro "Eichmann em Jerusalém" e causaria a provável maior controvérsia na sua vida.
Fazendo uma reportagem filosófica, digamos assim, Hannah Arendt não apenas desenvolve teses sobre o que viu ou pensou, mas também descreve o cotidiano do julgamento. Em uma de suas descrições, ela fala que houve uma espécie de conivência entre as lideranças judias e os comandos nazistas. Conivência essa que talvez tenha sido vista como uma forma de sobrevivência num primeiro momento, mas que, para ela, causou mais mortes no fim das contas.
Essa passagem, que não era nem próximo do ponto principal a que ela se agarrava, lhe causou uma inundação de cartas e ameaças. Judia, ela era acusada de trair o movimento sionista. Mesmo que ela dizia que sua pátria não era a Alemanha, Israel ou os EUA, mas os seus amigos. “Nunca me senti como uma mulher alemã e já deixei há muito de me sentir como uma mulher judia”, afirmava desde os anos de 1950.
Ao que parece, o pensamento construído por Arendt não resulta de um conflito de consciência, ou de um dever moral, mas de uma questão existencial. O que a filósofa queria deixar claro era que, para ela, Eichmann, assim como todos os homens e mulheres afetados diretamente ou indiretamente pelo nazismo, tinham perdido o dom mais precioso de suas vidas: a humanidade. Pensar não é uma atitude contemplativa, “é um ofício austero, longo e rigoroso”, é o que torna o ser Humano. E o totalitarismo tinha retirado a capacidade dos homens e mulheres de pensar, do jeito que Heidegger sugeriu. Essa é uma das características principais do totalitarismo.
Fossem nazistas ou judeus, alemães ou poloneses, os homens e as mulheres se transformaram em seres sem vida, que ou repetiam ordens sem refletirem sobre, ou lutavam única e exclusivamente por sua sobrevivência. Para Arendt, o homem não sobrevive, o homem vive. Daí, de uma maneira geral, o totalitarismo nazista teria atingido a todos, sem determinações geográficas.
O filme sugere que o que torna um homem, Homem é o ato de pensar, não no sentido de repetir automaticamente as decisões racionais, mas se envolver com as questões de maneira mais profunda, mais emotivamente, em suma, de maneira mais humana.
Em uma carta de Hannah Arendt para Martin Heidegger datada de setembro de 1969, ela parece confirmar esse raciocínio:
“Estamos tão habituados à antiga contraposição entre razão e paixão, espírito e vida, que nos espantamos em certa medida com a representação de um pensamento apaixonado, no qual pensar e viver se unificam. Este pensamento que se alça enquanto paixão a partir do simples fato de ter-nascido-em-um-mundo e então ‘procura seguir com o pensamento o sentido que vige em tudo o que é’ comporta tão pouco uma meta derradeira - o conhecimento ou o saber – quanto a própria vida.”
E completa em seguida:
“O fim da vida é a morte, mas o homem não vive por causa da morte. Ele vive porque é uma essência vital; e ele não pensa por causa de um resultado qualquer, mas porque é uma essência ‘pensante, isto é, meditativa’”.
Ao fim, à janela, e fumando e pensando, como sempre, o ciclo do pensamento se fecha com o que parece ser mais próprio da filosofia partilhada por Hannah Arendt e Martin Heidegger. “De todas as críticas que recebi, ninguém foi capaz de me fazer aquela única que eu respeitaria. O mal não pode ser banal e radical ao mesmo tempo”. Esta é a “qualidade cáustica” do pensamento: “ele deve se comportar em relação aos seus próprios resultados de maneira caracteristicamente destrutiva ou crítica”.
Por: Nashla Dahás e Ronaldo Pelli