O Curdistão, na verdade, nunca existiu, não chegou a ver a sua identidade reconhecida, não criou até hoje uma forte e duradoura base política e tampouco se organizou como nação. O resultado reflete o caráter nômade de um povo tribal, espalhado por áreas retalhadas, distribuídas entre o Iraque, o Irã e a Turquia, vivendo como estrangeiros exilados em terras que, inacreditavelmente, sempre foram suas. A triste situação sócio-política dos curdos traz em sua história os inúmeros embates com o governo iraquiano, que não os poupou de verdadeiras atrocidades cometidas após a invasão do Kuwait. Do lado iraniano, a história curda não é menos cruel, com aldeias miseráveis e abandonadas, o que se repete no lado turco, com miséria semelhante e uma forte presença militar conjugada com as permanentes queixas curdas de uma realidade bizarra e para lá de desesperançosa. O diretor iraniano Bahman Ghobadi retrata a dura sorte do povo curdo no mundo árabe justamente num pobre acampamento para refugiados no lado iraquiano, alguns dias antes da guerra do Iraque com os Estados Unidos.
Numa história recente, os curdos foram as presas preferidas do ex-ditador Saddam Hussein e, sobretudo, do seu primo, "o químico," Ali Hassan Al-Majid. Depois que, em 1986, vastas áreas da região curda foram libertadas do controle do governo central, fortes pressões passaram a perturbar o governo iraquiano em razão da guerra com o Irã. Por conta disso, entre 1987 e 1989, chefiados por Ali Hassan, "o químico," vários ataques foram lançados contra os curdos no norte do país, com destaque para o bombardeio com gases tóxicos sobre o povoado de Halabja, norte do Iraque, que deixou 5.000 mortos. Com o nome de uma sura, ou capítulo do Corão, que significa "Espólios", a Anfal consistiu em bombardeios sistemáticos e ataques com gases tóxicos praticados contra diversas partes da região autônoma do Curdistão em 1988. No centro de uma guerra étnica, os curdos foram combatidos, renegados e abandonados em campos de refugiados espalhados pelo país.
Tartarugas Podem Voar é um filme sobre os curdos que restaram no Iraque depois que Saddam Hussein os perseguiu ferozmente. É também um filme sobre seres humanos sobreviventes de um genocídio implacável e irracional, sobre pessoas que acordaram no meio da noite a pauladas e foram expulsas de suas casas sem maiores explicações. Muitos foram mortos ou mutilados. Mulheres adultas ou crianças foram estupradas por soldados e não sobrou classe que não tivesse sofrido alguma perda irreparável. No campo de refugiados, a vida se refaz sem uma ordem linear. As crianças dispõem a força de trabalho mais importante e necessária para reconstruir o que podemos chamar de área de sobrevivência, desmontando minas ou instalando antenas parabólicas para que todos vejam o país se preparando para mais uma guerra, desta vez contra os americanos.
Nesse cenário apocalíptico, mas também de reconstrução e esperança, conhecemos Henkov, que consegue ver o futuro, um adolescente de 14 anos, e sua irmã, Agrin, de 12 anos. Eles trazem uma criança pequena com eles, portadora de deficiência física. Com o desenrolar da história, o passado desses três pequenos vai sendo desvendado e o sentimento de humanidade vai se mostrando cada vez mais distantes dos próprios homens. Para Agrin, o sentimento da perda material, aqui da família, e as feridas psicológicas do passado, aqui a perda da inocência, são traumas que não serão curados e sua história pessoal ganha contornos de desespero e total desesperança. Ela protagoniza os momentos mais chocantes e comoventes do filme.
Em meio a esse caos pessoal de Agrin e sua relação com a realidade do acampamento, entra a figura de Satellite, assim conhecido nas redondezas por sua habilidade na instalação de antenas. Entre as crianças, ele é um dos mais velhos no acampamento, com seus treze anos, e ocupa uma posição de liderança. É ele que comanda seus trabalhos – eles ganham dinheiro recolhendo minas ativas da região para revendê-las – e, ao mesmo tempo, ensina aos mais velhos a mexer com o aparelho de televisão. Até por ser o único com algum conhecimento de inglês, ele ganha destaque em todas as atividades do acampamento e, assim, com sua enfeitada bicicleta, ele vai levando a vida.
A realidade desses meninos é relatada no filme de forma brilhante. São crianças que tentam sobreviver como podem, desarmando minas para serem vendidas em mercados de rua, onde qualquer um pode conseguir armas de guerra. O filme não apresenta de forma clara nenhum tipo de posicionamento político quanto à questão, mas dá rosto a indivíduos que costumamos pensar como uma massa humana abstrata; mostra a dura realidade dos dias de um povo que sofre para sobreviver em meio a uma guerra injusta, em que seu inimigo está mais bem preparado tanto física quanto psicologicamente.
O filme também apresenta a peculiaridade de ter no elenco crianças curdas refugiadas na vida real. Isso faz com que os pequenos atores interpretem de forma grandiosa suas personagens, transmitindo toda a força daquela realidade, muitas vezes apenas com o olhar, posto que têm vivido na pele aquilo que estão representando e reproduzindo. Este foi o primeiro filme feito no Iraque após a queda de Saddam Hussein, abrindo cada vez mais espaço para o cinema próprio dos curdos ao expor sua cultura e sua língua para uma plateia internacional, com um belo cenário e fabulosa trilha sonora. Não à toa, foi ganhador de diversos prêmios internacionais de grande importância, sendo mais um filme de Ghobadi com esta temática.
Ficha Técnica
Título original: Lakposhtha Parvaz Mikonand
País: Irã, França e Iraque
Ano: 2004
Direção e Roteiro: Bahman Ghobadi
Elenco: Soran Ebrahim, Avaz Latif, Saddam Hossein Feysal, Hiresh Feysal Rahman, Abdol Rahman Karim, Ajil Zibari
Duração: 98 min.