Fosse apenas uma adaptação bem feita do livro do jornalista Fernando Morais, Corações Sujos, que está sendo exibido no Festival do Rio, já mereceria atenção.
O filme de Vicente Amorim vai muito além: transforma a história, por si só interessante, dos conflitos na colônia japonesa em São Paulo no imediato pós-Segunda Guerra em pano de fundo para uma reflexão sobre valores em conflito e sobre temas permanentes como a honra e a justiça, o orgulho e a culpa. Como se não bastasse, com um apuro formal que rivaliza com qualquer cinematografia de Primeiro Mundo,Corações sujos funciona também como entretenimento de qualidade, graças em grande parte ao roteiro eficiente e fiel às convenções do cinema clássico americano, que imprime à história uma tensão crescente, com sua escalada de violência, e à interpretação impecável de todo o elenco, começando por Tsuyoshi Ihara, no papel do fotógrafo Takahashi, e Takako Tokiwa, como sua mulher Miuki – um e outra muito populares no Japão.
Numa comunidade de imigrantes que trouxe do país de origem um rígido sistema de valores, que associava à derrota à humilhação e via mérito na morte voluntária, o isolamento imposto pela anfitriões brasileiros produziu as condições necessárias para um um prolongamento a guerra. Negando-se a acreditar que o Japão perdeu a guerra, parte da colônia passou a enxergar aqueles conscientes da rendição como traidores, “corações sujos”, resultando em conflitos sangrentos e dezenas de mortes.
Vicente Amorim retoma, de certa forma, o tema de seu longa-metragem anterior, Um homem bom, com Viggo Mortensen, de 2008, sobre um indivíduo normal que adere ao nazismo por inércia; é um cineasta que se sente atraído por personagens comuns, arrastados pela força das circunstâncias a um papel ruim, que é levao para o lado errado por motivos aparentemente certos. Aumenta a força de Corações sujos o fato de seu protagonista não ser apresentado como um vilão, mas como um homem comum, dividido entre a lealdade à pátria e aos superiores e uma realidade na qual os alicerces de sua identidade deixam de fazer sentido.
Mesmo o personagem do Coronel Watanabe (Eiji Okuda), mais próximo do estereótipo do vilão, é construído de tal maneira que ganha credibilidade psicológica. É uma fala de Watanabe, aliás, que condensa uma das mensagens de Corações Sujos: o principal inimigo está dentro de nós. Evocando o cinema épico de Akira Kurosawa, o filme de Vicente Amorim é bem-sucedido em combinar um drama coletivo com tragédias individuais, ao mostrar que a guerra é também um estado de espírito, e que o preço a ser pago por ela recai sobre os pessoas, tanto quanto sobre os países. Li que segundo o Hagakure, o código de honra dos samurais, quando se desembainha uma espada é obrigatório sujá-la de sangue. Convém pensar bem antes de desembainhá-la.