O PERSONAGEM

Henry Alfred Bugalho

O personagem aparece por entre brumas no fundo da memória. É uma mescla de muitas pessoas, algumas que conheci, outras que vi em algum filme ou em livro, ou de mesclas de mesclas de várias outras pessoas das quais já me esqueci.
Não tem rosto, raras vezes sei quais são suas feições. Não me importa, deixe que o leitor preencha esta lacuna.


Ele permanece em silêncio, enquanto eu o fito demoradamente. Pondero sobre ele naqueles instantes inquietos antes de adormecer, ou dentro do metrô quando nada nos resta a fazer senão meditar, ou caminhando pelas ruas ao meu destino.

Às vezes, ele surge diante de mim em momentos inusitados, ao dispersar-me da leitura de um trecho enfadonho de Soljenítsin ou Beckett, durante o banho ensaboando o corpo, ou durante os intervalos comerciais da novela. Mas eu permito tais intromissões com a mesma tolerância que recebemos a visita inesperada de um caro amigo. Deixo que ele apareça e sente-se ao meu lado. Aguardo que ele me diga a que veio, mas ele insiste no silêncio.
Ele não está pronto, uma criatura incompleta.

Concebo cenas, planejo enredos, tento prever como ele se comportará. O que ele fará nesta situação? Como agirá? Apaixonar-se-á pela mocinha? Derrotará seu inimigo?
Mas dele só recebo um sorriso tímido. Também não sabe a resposta. Tem tantas dúvidas quanto eu, vazio de vontade e motivação, um títere sem vida dependurado cabisbaixo em fios. Aguarda meus dedos para manipulá-lo, insuflá-lo de ânimo, pô-lo em movimento.

Então chega o dia que tão ansiosos aguardávamos. Sento-me ao computador e cuido demoradamente a página em branco.
A página em branco, a grande adversária do escritor.
Sardonicamente, ela me desafia, zomba de mim e do personagem.
— Jamais conseguirá! — ela brada e, vez ou outra, ela me convence.

Escrevo qualquer frase, qualquer uma, mesmo que tenha de alterá-la, apagá-la, mesmo que seja ridícula, vazia, um clichê. Pois uma frase qualquer basta para calar, para macular a inquietante brancura da página, para pôr em marcha tudo aquilo que fervilha dentro de mim, para libertar a avalancha que, se não despencar montanha abaixo, arrancando árvores e sorretando tudo, poderá se voltar contra mim, lançando dúvidas e angústias, recordando-me dos dias em que eu ainda não sabia o que pretendia fazer da vida, nem se as minhas palavras tinham algum valor, se mereciam ser lidas por alguém.

A decisão é tomada: luto contra o mundo ou contra mim mesmo; empreender esta guerra em duas frentes não é possível — este havia sido o equívoco e prepotência de Napoleão e Hitler, superestimar suas forças.
A decisão é tomada: deflagro o turbilhão e me liberto. Uma frase somente basta, e tudo o mais decorre por si.

E os dias e meses planejando, concebendo, refletindo são postos abaixo. Assim que o primeiro esforço é realizado, o personagem mostra suas garras e assume o controle. A criatura se volta contra o criador. A marionete não era uma marionete porcaria nenhuma; sua inação era fingimento, apenas um disfarce para me enganar, atrair-me para sua rede e capturar-me.
Daquele instante até o fim, o personagem, o pobre “títere”, ata-me em fios e controla meus movimentos, enreda-me com a própria trama que eu pretendia dominar.

Dizem que, quando Robert E. Howard criou o personagem Conan, o autor sentia que o bárbaro cimério ficava postado ao seu lado, machado em punho, obrigando-o a escrever, aterrorizando-o caso fracassasse.

Creio que todo escritor encontra-se, pelo menos uma vez, nesta posição de prostração. Quanto mais isto ocorrer, melhor é. Quanto menos do escritor encontrarmos nas palavras, mais o personagem se engrandece, mais autêntico se torna.

Os maus escritores escrevem pela glória pessoal. Os bons escritores escrevem para que o personagem se torne completo, cumpra sua missão e diga plenamente a sua mensagem. A tarefa do autor é desaparecer por detrás do personagem que se forma.

Mas esta submissão nem sempre é pacífica. Somos falhos, meros humanos, cheios de orgulho e ambições. Pouco nos agrada sermos pisoteados por nossa cria. Todos os dias, a sociedade, os governos, os patrões, os poderosos nos oprimem, arremessam-se à lama da insignificância e subserviência. Acreditamos que, naqueles breves instantes de criação literária, de elaboração artística, nós seremos os senhores, a suprema autoridade.
— Este é o meu mundo! Minha criação! — berramos, debatendo-nos cheios de brio. E é neste embate que terminamos por destruir o que tanto almejamos. Pondo rédeas em nossos personagens, quase sempre os conduzimos para o precipício.

É impossível criar e, ao mesmo tempo, ter controle absoluto. Criar é permitir que o imprevisível se manifeste.
Aos poucos, o personagem começa a se despedir. Se conviveu conosco por horas, dias ou anos, tanto faz, pois, concluída a obra, ele viverá para sempre. Enquanto existir um leitor no mundo, o personagem estará pronto para ressurgir e contar sua história.
Retornamos, enfim, ao vazio, ao mundo cotidiano, à louça suja para lavar na pia, ao filme mais tarde na TV, ao trânsito congestionado, ao filho que não pára de chorar.
O personagem retorna a seu repouso.
O escritor tem outras páginas em branco para enfrentar.
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