O QUARTO PODER E MERA COINCIDÊNCIA



Na década de 1990 dois filmes iniciam uma nova visão crítica da mídia e do Jornalismo: “O Quarto Poder” (Mad City, 1997) de Costa Gavras e “Mera coincidência” (“Wag The Dog”, 1997) de Barry Levinson. A crítica não está mais na manipulação política dos fatos por jornalistas e interesses econômicos, mas na denúncia “metafísica” de que a realidade estaria tornando-se um “constructo” do próprio aparato midiático que pretende representá-la como notícia e informação. A realidade progressivamente assume aspectos de um estúdio de TV a céu aberto a tal ponto que não mais se distingue ficção e realidade.

A década de 1990 foi marcada por uma safra de filmes hollywoodianos que começam a tematizar as relações da mídia e jornalismo não apenas com os fatos ou as notícias, mas com a própria realidade. Se em outras décadas tivemos diversos filmes que denunciavam o caráter manipulador dos interesses políticos e econômicos de repórteres e dos conglomerados midiáticos (A Montanha dos Sete Abutres, 1951; Todos os Homens do Presidente, 1976; Network: Rede de Intrigas, 1976 etc.), na década de 1990 acompanhamos produções que vão além da denúncia da manipulação ao lançar uma estranha suspeita: o que entendemos como “realidade” pode estar se tornando um gigantesco estúdio onde acontecimentos são produzidos direta ou indiretamente pela presença dos aparatos de captação do real (câmeras, microfones, repórteres etc.): Ed TV (1999), Show de Truman (Truman Show, 1998), Herói por Acidente (Hero, 1992), O Quarto Poder (Mad City, 1997), Mera Coincidência, (Wag the Dog, 1997) etc.

Vejamos o caso do filme “O Quarto Poder”. Desde o filme “Z” (1969) sobre abusos da ditadura militar na Grécia, Costa Gavras se notabilizou como adepto do cinema político, mas nesse filme em particular o diretor abandona o campo da política institucional (o Estado, o Poder, a Repressão Política etc.) para entrar no ambíguo tema do jogo de mútuos reflexos entre mídia e realidade.


John Travolta faz o guarda de um museu (Sam Bailey) cujo mantenedor passa por dificuldades financeiras. Demitido pela sua administradora (Mrs. Banks), Sam desespera-se em perder todos os benefícios trabalhistas e retorna ao museu determinado em reaver o seu emprego. Dentro de uma sacola carrega armas e explosivos para, ingenuamente, “convencer” Mrs. Banks a recontratá-lo. Sam perde o controle da situação, obrigando a pegar todos que estavam no interior do museu como reféns para negociar com a polícia que cerca o local. Dentre os reféns está Dustin Hoffman (Max Breckett) que faz um repórter decadente que vê naquela situação inesperada uma forma de cobrir um evento que tenha repercussão nacional e o faça ser promovido e retornar ao noticiário da rede em Nova York.


A cobertura do fato pelo repórter que está no interior do museu junto com os demais reféns cria uma situação de múltiplos reflexos entre o fato e a mídia: as câmeras refletem a realidade espontânea dos fatos ou o próprio desenrolar dos acontecimentos são contaminados pela presença do aparato de cobertura televisiva? A certa altura Max Breckett é orientado pelos executivos da emissora a impedir que Sam se entregue de imediato à polícia para que a cobertura do evento alcance altos índices de audiência nacional no horário nobre. “Não se preocupem. Com Max em campo a história nunca termina”, afirma o âncora-estrela do telejornal Kevin Hollander. Eis o paradoxo quântico, simbolizado numa sequência do filme onde a vidraça do museu reflete a chegada do furgão da estação de TV local: quem reflete o quê?


Gavras nos mostra, progressivamente, como a realidade é seduzida pela ficção. No filme, duas imagens são recorrentes: primeiro uma configuração de plano que engloba sempre um monitor de TV dentro do próprio evento sempre sintonizado na emissora que transmite os acontecimentos. O evento vê-se a si mesmo ganhando uma estranha natureza autoconsciente ou metalinguística. É presença contaminante da mídia que transforma o evento em pseudoevento, realidade em supra-realidade.

Segundo: em vários momentos do filme encontramos personagens (populares curiosos, policiais etc.) tentando capturar a atenção das câmeras. A simples presença da câmera altera o objeto enquadrado, a observação altera o observado. 


E o que é mais importante: Max deixa de ser repórter para converter-se em um verdadeiro diretor de cena. O script e os principais personagens já estão prontos na sua cabeça: ele precisa direcionar a realidade para que ela confirme a sua pauta. Max orienta Sam a acompanhar um script, ou uma espécie de protocolo, que a mídia e a opinião pública esperam em eventos como esse (por exemplo, libertar duas crianças, uma negra e outra branca, para não ser acusado de racismo, pedidos de reivindicações plausíveis, etc). A partir daí a realidade se transfigura para a supra-realidade: Sam assume o personagem de sequestrador, consegue a simpatia da opinião pública e até pensa em um futuro programa na TV (o “Cantinho da Pesca do Sam”). Sam olha para si mesmo e para o próprio evento que ele protagoniza através do monitor da TV do museu. Esta situação metalingüística produz uma irresistível supra-realidade: história e estória, ficção e realidade, referente e simulacro confundem-se. O próprio interior do museu transforma-se numa espécie de set de gravação.


Mera Coincidência


Enquanto o então presidente Bill Clinton envolvia-se em um escândalo sexual com uma estagiária (Monica Lewinsky) e charutos no Salão Oval da Casa Branca, coincidentemente o filme “Wag the Dog” era lançado contando a estória de um presidente dos EUA que, na reta final da campanha pela reeleição, também se envolve em um escândalo sexual com uma adolescente de um grupo de bandeirantes que visitava Washington.
No mundo “real” o escândalo Lewinsky dominou de tal forma a agenda de Clinton que ao responder ao ataque terrorista a duas embaixadas Americanas em África com um ataque com mísseis de cruzeiro contra alegadas posições terroristas no Sudão e no Afeganistão, muita gente considerou que se tratou de uma iniciativa para desviar a atenção dos seus problemas internos.


No mundo ficcional, o presidente convoca um conselheiro especializado em contra-ações de marketing (Robert De Niro) que precisa reverter a agenda a poucos dias do final da campanha: contrata um produtor de Hollywood (Dustin Hoffman) para produzir uma guerra fictícia contra o suposto país promotor do terrorismo internacional, a Albânia. Heróis, jingles, campanhas cívicas, vídeo clipes etc., uma verdadeira campanha promocional é criada para que a mídia morda a isca.

O que impressiona no filme (e que faz lembrar das discussões em torno do “pseudoevento” em Daniel Boorstin em postagem anterior – veja links abaixo) é a produção de um suposto vídeo sobre a guerra no front da Albânia, “vazado” através de satélites, para que as redes o apresentem no horário nobre.


Filmado em “croma key”, vemos uma jovem albanesa com um gatinho branco nos braços fugindo de terroristas estupradores em meio ao fogo cruzado de bombas e incêndios. Tudo muito melodramático, “over”, kitsch, estereotipado e com o “appeal” e “look” semelhante às produções medianas de Hollywood e “sitcons” do horário nobre. Apesar disso, jornalistas e a opinião pública mordem a isca do suposto vídeo “vazado” como fosse um vídeo documental.


Mais do que um vídeo falso, há algo de mais preocupante: o público não percebe a disparidade entre realidade e ficção, isto é, não vê que as imagens estão carregadas demais, que a caracterização da jovem albanesa é muito “overacting” e que os elementos que compõem o cenário (sirenes “ao estilo Anne Frank”, o gatinho malhado, os incêndios) estão meticulosamente configurados numa feliz coincidência. Por que as pessoas não percebem a explícita natureza “fake”? Porque tomamos o real a partir das suas representações anteriormente produzidas, no caso os filmes B de Hollywood.

Vídeos semelhantes povoam o horário nobre da TV: terroristas cujas fotos parecem ter saído dos releases promocionais de filmes de ação (eles são os “RAVs” – russos, árabes e vilões em geral), bombas aparecem em carros em momentos oportunos para encobrir outros eventos (como o exemplo da “descoberta” de um carro com bombas na Times Square no mesmo dia das primeiras notícias sobre o derretimento dos mercados europeus em 2010).

A opinião pública não percebe a natureza “fake” ou “forçada” destes pseudoeventos porque própria estrutura de percepção do real já foi alterada anteriormente por décadas de cultura pop: tomar o real não a partir dele mesmo, mas a partir dos seus simulacros.

Essa inversão perceptiva pode ser verificada no dia-a-dia. Por exemplo, chegamos a uma barraca de frutas e vemos uma linda maçã vermelha, brilhante e suculenta. Tão perfeita que não nos conformamos de ser real. “Que maçã linda. Parece até de plástico!” E temos a necessidade de tocá-la para nos certificarmos da sua existência. É a inversão perceptiva pós-moderna. Não percebemos que é o plástico que imita a perfeição da natureza, mas invertemos os referenciais: parece que é a maçã real que imita a sua cópia de plástico. A esta inversão os estudiosos pós-modernos chamam de hiperrealidade.

Fonte: http://cinegnose.blogspot.com.br

Ficha Técnica
  • Título original: Mad City
  • Diretor: Costa Gavras
  • Roteiro: Tom Matthews
  • Elenco: John Travolta, Dustin Hoffman, Alan Alda, Blythe Danner, Robert Prosky
  • Produção: Arnold  Kopelson Productions
  • Distribuição: Warner Home Video
  • Ano: 1997
  • País: EUA
Ficha Técnica
  • Título original: Wag the Dog
  • Diretor: Berry Levinson
  • Roteiro: baseado no livro de Larry Beinhart “American Hero” roteirizado por David Mamet
  • Elenco: Robert De Niro, Dustin Hoffman, Anne Heche, Denis Leary, Willie Nelson
  • Produção: New Line Cinema
  • Distribuição: Play Art Home Video
  • Ano: 1997
  • País: EUA

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