O MENINO E O MUNDO





O filme de animação O Menino e o Mundo, dirigido por Alê Abreu, já vinha revelando uma rara unanimidade entre os críticos de cinema, nos festivais e mostras internacionais das quais participou em 2013. O aplauso do público, após o lançamento comercial brasileiro em janeiro de 2014, só confirmou que se tratava de uma novidade muito especial no cenário da animação brasileira. Não é exagero afirmar que sua relevância vai além dos filmes de animação. Traz bons ventos à cinematografia brasileira como um todo, afirmando-se como uma de nossas melhores produções audiovisuais dos últimos tempos.

Tentarei esboçar alguns dos aspectos que fazem deste filme uma obra prima do audiovisual brasileiro e mundial. Certamente, muitas críticas e estudos ainda serão escritos sobre essa animação tão mágica e poética.

Em junho de 2014, depois de circular por muitos festivais mundiais, sempre arrebatando prêmios, veio o veredito do festival mais conceituado do mundo da animação: o melhor filme no Festival de Annecy, na França. Até 2013, o Brasil nunca tinha participado na mostra competitiva deste festival. Sua estreia se deu com Uma História de Amor e Fúria, de Luiz Bolognesi (2013), premiado como melhor filme pela crítica especializada. Em 2014, ganhou novamente o primeiro prêmio, sendo que, desta vez, o reconhecimento foi da crítica e do público.

Segundo Luiz Bolognesi, que compôs o júri deste último festival, o “boom” da atual fase da animação brasileira pode ser comparado ao sucesso da bossa nova no início dos anos 1960. De acordo com o cineasta, a animação brasileira tem se destacado mundialmente por seu radicalismo e por sua marca autoral. A prova disso é que O Menino e o Mundo custou menos de 2 milhões de reais e ganhou de produções norte-americanas e japonesas – os craques da animação mundial – que custaram mais de 20 milhões.

Segundo Alê Abreu, as ideias iniciais para fazer esse filme surgiram logo na fase de finalização de seu primeiro longa – Garoto Cósmico (2008) –, quando ele abraçou um projeto de pesquisa sobre a conturbada história do continente latino-americano, do ponto de vista das canções de protesto. De mochila nas costas, percorreu diversos países, estudando história e música, levando consigo um caderno de anotações, uma espécie de diário com rascunhos de ideias e muitos desenhos.

Foi nessa viagem que o menino lhe surgiu. Batizado inicialmente de Cuca, tempos depois perdeu o nome. O diretor optou por chamá-lo apenas de menino.



Nos anos seguintes, era como se o menino tivesse vida própria e lhe contasse passagens de sua história, sem linearidade e sempre na ambiência daquela viagem e da música latino-americana. A primeira imagem que brotou foi a de um menino em um jardim muito colorido, brincando com bichos e plantas, até que é levado pelo vento, aventurando-se pelo mundo. A motivação de sua viagem é a saudade do pai, que tomara um trem em busca de trabalho no campo ou na indústria, já que a plantação de sua pequena propriedade não mais sustentava sua família.

O processo de produção do roteiro se deu de forma atípica. Ideias desconexas foram se juntando, ligadas muito mais por música e desenhos, já que o cineasta é artista plástico e tem forte ligação com a linguagem musical. Talvez por isso, há poucos diálogos no filme, que são falados em português de trás para frente. Desta forma, a palavra “menino” é falada “oninem”. A palavra “adeus” é “sueda”. O mesmo se aplica às propagandas e telejornais que estão sempre nesta linguagem (escrita e falada), dispensando palavras claras. A crítica à mídia é mordaz, mostrada como elemento de alienação e manipulação ideológica.



A narrativa com cores e som conjugados traz um sentimento nostálgico da infância e do estado natural das coisas. Logo no início do filme, mergulhamos numa experiência sensorial indescritível, quando caímos junto com o menino no meio das árvores e depois num lago com peixes.

Além do forte colorido feito com as mais diversas texturas e técnicas de desenho, somos acompanhados pela sonoridade de Naná Vasconcelos, que nos remete ao som das árvores e das águas. Os perigos que essa criança enfrenta no início do filme, estão na ordem do crescimento natural, dos tombos, galos na testa e arranhões no joelho, que todos nós ganhamos na primeira infância.

Como o filme é mostrado a partir dos olhos ingênuos e perplexos do menino, com fala incompreensível, o espectador veste sua pele e sente como ele os problemas do mundo adulto, ainda que não os entenda e que nada lhe seja explicado. Apesar de sentirmos como ele, nós somos adultos, por isso vem uma grande aflição em relação aos perigos que o menino enfrenta.


A união do desenho com a música tem presença muito forte, por exemplo, na representação dos sons da flauta: quando o pai toca a flauta em uníssono, o som é representado por bolinhas de uma mesma cor; quando aparecem vários músicos tocando uma música mais harmonizada, as bolinhas são de várias cores. A imagem do pai, cada vez mais distante, se concretiza no som da sua flauta, guiando suas aventuras. Mais adiante, quando o som vem do exército opressor, as bolinhas são pretas. A mesma oposição se dará com os pássaros que lutam: o pássaro preto está do lado do opressor e o colorido representa o movimento popular, sempre renascendo.

A trilha sonora, composta por Gustavo Kurlat e Ruben Feffer, é essencial na narrativa e mostra influência das canções de protesto latino-americanas. Além do percussionista Naná Vasconcelos, o filme conta com a participação do rapper Emicida, do GEM – Grupo Experimental de Música e do grupo Barbatuques, marcando cada passo e respiro do menino.


O filme é adequado para qualquer idade, pois, independente de seu engajamento e do pano de fundo sociopolítico, o filme é de uma plasticidade rara. Sua ousadia estética se dá inclusive no intenso uso do branco, em contraponto às paisagens que lembram Paul Klee ou Kandinsky.

Outra opção estética interessante é a utilização de traços muito simples no espaço de origem do menino, com cenários feitos com lápis de cor, canetinhas e tintas. À medida que o menino trava contato com a complexidade do mundo, com as injustiças e aberrações do mundo urbano, a textura dos cenários é invadida por colagens de jornais e revistas, chegando ao ponto de pegar fogo na folha do desenho, transformando-se em vídeo, em uma cena quase apocalíptica.

A identidade latino-americana em tempo e espaço indefinidos

O Menino e o Mundo não localiza o espectador nem no tempo nem no espaço. Somos levados como o menino, num tempo impreciso, a lugares imaginários, mas nem por isso irreais. Saindo de seu jardim colorido e poético, o menino conhece a realidade dos processos de trabalho capitalista em todas as suas etapas: plantações de algodão em larga escala, tecelagem, distribuição para o mercado consumidor, exportação e, por fim, a publicidade incitando ao consumismo. A chegada da tecnologia para os trabalhadores significa o desemprego e a acentuação da exclusão.



Apesar dessa imprecisão, não há como não pensar nos processos semelhantes de colonização pelos quais passou todo o continente latino-americano. Primeiro como colônia fornecedora de matéria prima e mão de obra barata. Depois, a condição de todos esses países terem sido governados por ditaduras militares, representadas no filme por grandes tanques de guerra – como se fossem máquinas-monstro. O clima de opressão é quebrado várias vezes por uma trupe de músicos e dançarinos, com gorros e ponchos coloridos, tocando músicas alegres, ao som da flauta-pan. São momentos de respiro, como a lembrar que a resistência popular não morreu e dará alento a esse menino tão solitário.

A situação de dependência mantém-se até hoje no mundo globalizado. O descaso com que são tratados os trabalhadores é mostrado tanto no trabalho do campo como na fábrica. Outra crítica importante é a questão da destruição do meio ambiente. Mas o filme não nos fala apenas de opressão e destruição, mas também da resistência cotidiana criativa e transformadora, como nos diz Michel De Certeau (2003). O operário que se solidariza com o menino mora na periferia, dorme em frente à televisão, toca sua flauta em um lixão e ainda consegue participar de feiras de artesanato aos fins de semana.



A imprecisão e a simplicidade desse menino desenhado com lápis de cera mostra uma estética minimalista, muito diferente dos grandes estúdios de animação. Essa simplicidade o torna um menino único e universal, ao mesmo tempo. Há uma cena em que o menino espera a chegada do trem e vê seu pai. Quando corre para abraçá-lo, ele vê vários homens iguais, uma infinidade de trabalhadores em busca de uma vida melhor. O aperto no coração que sentimos neste momento não se deve apenas ao sentimento de saudade do garoto, mas também à dor dos imigrantes brasileiros e universais, ao abandono dos trabalhadores e suas famílias, à dor da miséria humana.



O Menino e o Mundo é uma obra humanista e densa, que mostra a complexidade do mundo por meio de um desenho simples de menino. E essa simplicidade da essência permite que o filme faça uma forte comunicação com todo tipo de espectador.

Pensando na potencialidade do cinema como instrumento de formação cultural, este é um filme fundamental para ser visto por crianças e adultos, educadores e educandos, pois permite que aflore nosso sentimento de sujeito, como parte de uma sociedade e como parte da espécie humana.

Referências:

CERTEAU, Michel De. A Invenção do Cotidiano, Artes de Fazer. Petrópolis/RJ: Vozes, 2003.

MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, São Paulo: Ed. Cortez,2001.

Fonte: http://www.cartacapital.com.br/

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